Mulheres negras são cheias de amor
De um amor forte que carrega dores, vidas e famílias, mas que se enternece e amolece de cada vez que ele é reconhecido e correspondido.

De Maio a Agosto fui parte de um quilombo de escrita criativa com maravilhosas mulheres brasileiras, todas negras. Foi online, mas pareceu que um lugar físico foi criado. Nos encontrávamos de duas em duas semanas, e a cada encontro era como se tivéssemos saído do quilombo, vivido noutro lugar para depois voltar a entrar.
Um quilombo só de mulheres onde a fala de cada uma era escutada, respeitada e aprendida. Aprendemos todas umas das outras, acolhemo-nos umas às outras e incentivamo-nos umas às outras sem nos conhecermos de antes, sem termos regras de convivência, sem ninguém nos dizer o que estávamos ali a fazer.
O que poderia ter naturalmente sido uma competição entre nós, não o foi. Tínhamos todas algo em comum para lá do objetivo do programa da FLUP: uma sede imensa de amor. No lugar onde chegamos e juntas construímos, essa sede o transformou num santuário onde a cada 15 dias se derramava amor.
O amor derramado ali, não era da forma convencional conhecida e talvez já gasta. Em momento nenhum uma disse que amava a outra. Em momento nenhum uma disse que acarinhava a outra. Em momento nenhum uma disse que acolhia a outra. Só acolhemos, só acarinhamos, só amamos. Agimos, não falamos.
Em muitos momentos, sim, a admiração pelas palavras de umas e de outras eram expressas. Valorizamos cada uma presente, as experiências que cada uma trazia para o quilombo e debatíamos muito um mundo à nossa volta, também sedento de amor.
Um mundo que se tem mostrado violento, com constantes ataques de supremacia de seja lá que tipo, um mundo que tem espalhado a mentalidade de escassez e medo com um capitalismo cruel, um mundo que tem sido por séculos racista, homofóbico, injusto.
Esse mundo não é físico, mas mental criado e alimentado por nós mesmos e dita as regras da vivência no mundo físico em que existimos com os nossos corpos, fazendo dessa existência dolorosa e sofrida.
Esse mundo tem um contraste enorme com o mundo físico que realmente recebemos da natureza que bem pelo lado oposto é abundante, belo e sabe fluir pelos percursos e ciclos naturais da vida com aceitação deixando-se relaxar confiando na sabedoria dela.
Nesse quilombo expusemos e debatemos como o mundo criado pela mente humana nos (mal)trata, partilhamos as vivências de dor que temos dele, e escrevemos várias vezes, tentativas de amor, de sermos amadas, que a princípio pareciam sempre incompletas, sempre deficientes, sempre uma busca que nunca chegava a nenhum encontro.
Mas sem cessar, por mais dolorosas que fossem as deceções, as desilusões de não encontrar esse amor, naturalmente essa busca continuava. Era como se qualquer coisa com que já nascemos nos fizesse continuamente ir à procura do amor, como vamos à procura de alimento.
Tantos foram os nossos testemunhos de desamor que duram gerações, que constatamos que houve mesmo gerações que não sabiam sequer o que era o maltrato, e não se recusavam a dar amor em meio ao maltrato.
Outras gerações vieram e se tornaram já mais conscientes do maltrato. Tentaram recusar-se a dar amor, mas ainda assim de alguma outra forma canalizaram esse amor. Muitas vezes esse amor se transformou em anos (que completam vidas) de trabalho doméstico que pagaram estudos de filhos que se formaram. Muitas vezes esse amor se transformou em poesia que celebrou vidas arrancadas à força. Muitas vezes esse amor se tornou em lágrimas que permitiam a outra pessoa viver uma vida diferente da que se sonhou com ela. Muitas, mas muitas vezes mesmo, esse amor foi e é trançado nos cabelos crespos de cabeças de mulheres por mãos de outros cabelos crespos. Muitas vezes esse amor se tornou em gritos de guerra que protegiam crianças, culturas, nações.
O amor da mulher negra é cheio de força porque ele tem sido vivido em resistência para existir. Ele não é um amor que se tem podido deixar descontrair e fluir em leveza. Ele é um amor que empurra para a frente e move mundos e vidas. Quando ele nos dá uma alegria, é uma alegria que realiza não só a nós mas a gerações que vêm depois de nós e a gerações que vieram antes de nós. Essa é a força que ele tem!
Descobrimos que é assim porque o mundo que a mente humana criou, fez com que só pela mais poderosa força do amor a mulher negra continuasse a existir. Mas descobrimos da mesma forma que mente humana para revolucionar o mundo também temos!
E se temos tamanha força de amor, agora vamos de forma consciente canalizá-la para a nossa mente, para mudar a nossa realidade, o nosso mundo.
Decidimos que não vamos mais deixar incompletas as nossas histórias de amor. Decidimos que não vamos mais ficar no ciclo vicioso do medo, escassez e dor das memórias das nossas vivências e das vivências dos nossos ancestrais, e vamos dar um salto para fora dele.
Vamos sair desse rodopio desnorteante porque o quilombo, graças às forças invisíveis que não podemos manipular, se deu num lugar “etéreo” onde nos permitiu estar sem presença física e observar através da orientação ancestral do espírito de Carolina Maria de Jesus - mulher negra, favelada, só com a quarta classe, contudo escritora e best seller- o passado, o presente e o futuro.
Permitiu observar como plantar a semente do amor nas nossas vidas agora, faz crescer a árvore cujos frutos vamos comer amanhã. E será leve…
Mesmo sem ver ainda a materialização do amor, decidimos passar a completar as nossas histórias com finais que não existem ainda, com finais que imaginamos, com finais que mentalizamos para nós, com os finais que queremos que são cheios de amor que têm tremenda força.
Cada um desses finais é o futuro que vamos viver. E será leve…
E será belo.
E será fluído.
E será amoroso.
E ninguém duvida da força do amor da mulher negra. Ela realiza!
….“Só se” não sou preta!