Este título é de um post do instagram de @tiagobrunet, que me fez lembrar de uma das lições que a mudança para a cidade me trouxe.

Há muito que não tinha que lidar com os assuntos de luz, água e estacionamento que os residentes dos prédios antigos da cidade de Luanda lidam.
Estacionamento é um dos cabeludos.
No prédio em que vivo, que por acaso é o prédio em que cresci. O estacionamento sempre foi tema. Antes eram os meus pais que lidavam com ele, quando deixamos o prédio eu ainda não conduzia. Mas já a minha mãe se arreliava com a questão, não era desconhecida para mim.
Voltei lembrando das vezes que fomos fechados e precisamos esperar até que o vizinho descesse para tirar o carro e podermos sair. O contrário também acontecia. É uma situação que dura uns bons 30 anos no mínimo. Com o tempo ficou mais difícil de se resolver, pois, com a falta de transportes públicos em Luanda, com trabalhos e escolas em lugares e horários diferentes e muito trânsito, é normal que uma família tenha a necessidade de ter dois carros. É quase impossível hoje que o proprietário do carro deixe cada pessoa da família no seu lugar de trabalho ou estudo para depois ir para o seu e no fim fazer a recolha.
Tudo isso compreendido, 15 apartamentos num só prédio teriam uma média de 2 carros por apartamento, é a estimativa. Seria então necessário estacionamento para 30 carros, num prédio feito numa época em que transportes públicos funcionavam em não se previa que haveria tanta necessidade de estacionamento. Não há lugar para todo mundo e obrigatoriamente uns fecham os outros.
É uma situação fora do controle de todos nós.
Compreendendo isso entendo que às vezes o meu carro seja fechado, e que o ato não seja feito por maldade, mas sim por necessidade, que é o que me costuma acontecer. Deixar o carro num lugar disponível um bocado mais longe do prédio, já escapa à segurança e o carro é assaltado como me aconteceu na fase em que eu decidi estacionar longe e não fechar os vizinhos.
Mudei de pensamento e decidi fechar e disponibilizar-me sempre com cordialidade para retirar o carro.
Uma sexta-feira cheguei a casa relativamente cedo, mas já não havia lugares. Às vezes gente que não é do prédio estaciona o carro no estacionamento do prédio para passar a noite porque há maior segurança do que perto de onde vivem. Havia um carro que eu não conhecia estacionado num lugar que podia ter sido para mim, então só me sobrou o lugar que era o que fechava os carros. E tive que ser eu a estacionar no lugar que fecha carros.
Naquele dia estava cansada, subi os seis andares e fui para a cama cedo. Às 22 horas e tal já estava na cama quando a campainha tocou. Achei estranho, não estava à espera de ninguém, mas lá me levantei. Um dos guardas veio avisar que o meu carro estava a fechar o carro de alguém. Fui à janela e vi que estava um vizinho meu a quem eu conhecia desde que me conheço por gente e o via como um pai, e mais um casal ao lado do meu carro. Entendi que eram visitas desse vizinho, vesti-me e desci os seis andares para ir tirar o carro.
Quando cheguei cumprimentei cordialmente “Boa noite”. O que recebi de volta foi algo que me deixou desnorteada e sem muito mais palavras “Boa noite?!! Má noite!! Então você fecha três carros?!” Com uma brutalidade que eu nunca pensei receber de uma pessoa a quem eu trato com tanta consideração e respeito. Abri a boca para tentar explicar “Não…” “Não?!!! Então não está a ver aqui os três carros fechados, está a gozar?!!” Naquele momento chocada e ofendida olhei para o senhor que me destratava, enquanto a minha cabeça respondia que “se a sua visita não tivesse estacionado no lugar de um morador, o morador não teria ficado sem lugar e não o teria fechado. E por outra, aqui se há alguém que é fechado, outro vem e tira o carro e não há necessidade para faltas de respeito.” Havia dentro de mim toda uma resposta, e ainda a indignação por eu ter sido tirada da cama, para vir ser destratada ao dispor-me a educadamente vir retirar o carro para alguém que não tem lugar reservado no edifício.
Entre ouvir a senhora dizer “Tem calma…” e os berros do meu vizinho “Não tem nada que fechar!!” ordenando-me com maus modos como se eu fosse escrava dele a tirar o carro, decidi que por mais que ele merecesse uma boa resposta eu não a iria dar.
Queria voltar para a minha cama e dormir cedo que era o meu plano. E dormir bem.
Não respondi. Fui tirar o carro. As visitas foram-se embora, e o meu vizinho ficou estranhamente de pé à espera de que eu voltasse a estacionar o meu carro.
Esperou por mim para me abrir a porta do prédio. Abriu, sem dizer uma palavra. Eu passei sem dizer uma palavra. Fui para casa, para o quarto, para a cama.
Eu queria dormir cedo para dormir bem.
Não aconteceu. Fiquei a remoer aquela situação dentro de mim, indignada, revoltada, chocada, chateada comigo mesma por não ter dado uma resposta, ou por não ter dito “ai é? É assim que se trata as pessoas? Então tirem o carro por magia ou chamem um táxi, porque a mim não me apetece colaborar com má educação”, e planeando até uma doce e fria vingança.
Me dei conta que estava no lado errado. Tinha feito bem sim em não responder. Tinha feito bem em ter tirado o carro. Só não fiz bem em deixar aquilo afetar-me do jeito que afetou, porque naquele momento estava sem conseguir adormecer porque estava inquieta com o ocorrido.
Cheguei à conclusão que o que tinha que passar a acontecer na minha vida devia ser olhar para essas situações e ser capaz de me abstrair, olhar de fora como um espectador. Pensei “eu devo realmente ser uma pessoa evoluída, por simplesmente não me predispor a ofender e destratar as pessoas sem motivo”. Só isso já deve contar como evolução. Lembrei-me também de um dos meus favoritos provérbios de sábios e tolos:
“Mestre, qual é o segredo da felicidade?
- Dar razão aos idiotas.
- Não concordo que esse seja o segredo!
- Você tem razão.”
Sempre me fez rir esse provérbio. Percebi que naquela noite, falhei comigo mesma. Apesar de não ter discutido, não dei razão ao meu vizinho que eu tanto respeitava, mas que tinha sido um idiota comigo. Eu estava mentalmente a discutir com ele, para lhe mostrar o quanto ele não tinha razão, e não estava feliz. Não estava a dormir cedo e bem como queria, que era onde estaria a minha felicidade naquele dia. Não me lembrei a tempo do provérbio.
Eu quis responder e discutir. Não o fiz porque percebi que seria perda do meu tempo, naquele momento. Mas deixando que me afetasse, continuei a perder tempo discutindo mentalmente.
Esse não me envolver nas idiotices dos outros tem mais a ver com preservar o meu bem-estar do que mostrar a alguém como ele está errado esperando que ele mude de comportamento. Se um ser humano é agressivo ou maldoso é porque já há algo dentro dele que não está bem. Quando estamos bem, felizes connosco mesmos não destratamos os outros. Algo deve haver naquela alma que a inquieta e que a faz ter essas atitudes.
É como um bebé de três anos que ao não saber lidar com o que lhe contraria, faz birras. Um adulto já deve ter essa capacidade. Se não a tem, algo se passa nele, e é preciso que trabalhe na sua inteligência e maturidade emocional.
Fiquei vários dias a digerir esse aprendizado e a fazer as pazes com a situação, porque eu sou sensível a ser tratada com agressividade, especialmente quando eu trato com amabilidade.
Para finalizar o aprendizado, como arranjinho do universo, encontrei-me com o post no instagram que dizia “Quem vem atacar não merece o nosso tempo, nós temos que doar o nosso tempo a quem está somando com a gente. Nós temos que valorizar quem bota a mão no nosso ombro e fala “isso aí, continua”; “Eu nunca mais dei atenção, por causa da saúde emocional. Eu quero dormir, eu quero ter paz, eu quero ser um bom pai para os meus filhos, então para isso, eu não me importo com a opinião de pessoas que não estão pagando o preço da vida comigo.”
A questão é valorizar a mim!
A minha saúde emocional, o meu tempo e a minha felicidade e não dar tempo de antena, nem atenção (que seria validar) a quem vem atacar. Ao não dar tempo de antena, eu não respondo, não dando à fogueira que essa pessoa quer inflamar. E ao não validar a sua ação ou palavras agressivas eu não deixo que os seus atos me afetem e continuo na minha paz.
Acredito que o meu vizinho tenha ficado envergonhado com o seu espetáculo. Até hoje não vejo outra razão para ele ter ficado à espera para me abrir a porta do prédio. Talvez tenha sido a forma dele de pedir desculpa.
Ainda falta algum tempo para perdoá-lo por completo, estou a planear não lhe cumprimentar da próxima vez que me cruze com ele. Entretanto isso sou eu agarrar-me à ofensa, em vez de deixar ir e estar leve. Mas também entendo que o processo natural de crescimento leva o seu tempo, então vou ser paciente com aquilo que estou a sentir até deixar de sentir.
Se bem que ele merece, mas já está envergonhado o suficiente. E eu mereço paz!
Sara