É hábito que se nos passe a informação de que devemos criar uma família, que devemos ter filhos, tornando o trazer um ser humano ao mundo num dever social. Quando se encara algo como um dever raramente se faz ligação ao prazer desse ato, esse ato se transforma numa tarefa.

Nesse processo se instala frequentemente uma pressão que a sociedade nos faz para provarmos que conseguimos fazer filhos, seja para homens, seja para mulheres. Tanto as mulheres vivem com o fantasma de serem consideradas “inválidas” se não fazem filhos, como os homens são os “mbakus” se não fazem filhos.
Olhando bem homens e mulheres sentem todos a pressão de provar que podem fazer filhos, por mais que os homens falem menos nisso.
A pressão de apressar-se a fazer filhos para que não passem da idade, a pressão de constituir famílias para mostrar à sociedade que eles se inserem no padrão imposto e esperado.
Por mais que seja bom constituir família e ter filhos, não acredito nisso ser forçado às pessoas, muito menos em que seja um dever dos seres humanos. Se é para se fazer porque é “bom” então tem que ser “bom” mesmo.
Tem que ser com prazer, tem que se desejar.
Tanto homens como mulheres na nossa sociedade sofrem pressão da família, amigos, colegas para trazer um ser humano ao mundo: “Nem um disco no mercado?” Como se de um objeto na via, um ser humano se tratasse.
Fiquei a pensar como eu me sentiria se descobrisse que ao ser posta no mundo eu teria sido pensada como um “disco no mercado”. Como uma ferramenta para os meus pais atingirem um objetivo e validação de outros. Então não me tiveram por que me quiseram, mas sim porque era preciso provar alguma coisa, cumprir com algum ritual, ou dever?
Tentei imaginar quantas pessoas terão sido postas no mundo só para se cumprir com os processos requeridos pela sociedade: estudar, casar, ter filhos. Quantos de nós foram realmente desejados de forma consciente?
Quantos de nós já ouviram num momento de desespero dos nossos pais, o “se eu soubesse…”, ou o vimos nos seus olhares?
E quantas crianças mais vão ouvir, ver ou sentir esse arrependimento por parte dos seus pais?
Qual foi a tua motivação raíz – lá no fundo do teu ser - para teres um filho? Qual é a tua motivação para ter um filho, se ainda não tens? De verdade, lá no fundo do teu ser, porque é que queres um filho?
De que é que serve provar a alguém – nem que esse alguém sejas tu mesmo - o que quer que seja? De que é que serve cumprir o requisito de um grupo, de uma sociedade, quando esse requisito não está em harmonia com a tua essência e com aquilo que queres para ti? De que é que te serve a ti, de que é que serve aos outros, e principalmente de que é que serve à criança?
É aquele ser humano uma mera ferramenta para que nos sintamos momentaneamente bem com o nosso próprio ego? Vamos pôr uma criança no mundo só para provar que o conseguimos fazemos?
Todas essas perguntas estiveram a dançar na minha mente e fizeram-me chegar à conclusão que ao fazermos isso estamos a ser extremamente egoístas, e é muito triste…
Ao decidir engravidar, devemos ter uma criança porque a desejamos, pois o que uma criança precisa é de ser desejada. Para trazermos qualquer pessoa a longo prazo para a nossa companhia temos que a desejar. Ninguém fica, se não for obrigado das mais diversas formas, na companhia de alguém que não deseja por longo tempo. Naturalmente procuramos melhor companhia, vamos embora, abandonamos.
É até o mais certo a fazer no que concerne a nossa saúde mental. Imaginem então serem obrigados a conviver anos a fio com alguém que não vos desejou, mas vos trouxe ao mundo. Ou no caso dos pais, com crianças que não desejaram, mas que agora têm o dever de criar, porque as trouxeram ao mundo.
Um ser humano não é para ser usado.
Especialmente um que pelas leis e suas características naturais vai estar tão conectado aos seus progenitores e vai necessitar do seu amor, carinho e dedicação para sobreviver de forma saudável. É atroz que esse ser ao ser criado na sua infância e adolescência sinta que não é desejado, mas sim que é simplesmente uma ferramenta. Que lá no passado foi útil para que duas pessoas provassem a uma sociedade que a conseguiam fazer e que no futuro longínquo vai ter a utilidade de cuidar delas quando vier a sua vulnerabilidade, porque eles cuidaram dele quando ele era vulnerável. É quase como ser um “seguro de velhice” e porque durante a sua infância precisou que eles cuidassem dele agora tem o dever de cuidar dos progenitores.
Mas em primeiro lugar, essa pessoa pediu para ser posta neste mundo em que os progenitores tiveram o trabalho de cuidar dela? Não são eles mesmos responsáveis pela sua vida e escolhas? Ao fazer essas escolhas, devem estar conscientes daquilo que realmente querem para si. E se cuidar de um ser humano para o resto da vida não faz parte da lista do que querem para si, então que não se tome uma decisão que traga exactamente isso. E que essa decisão seja respeitada pelos demais, pois é assertiva e legítima.
Que tipo de pais vamos ser nós, quando na verdade não desejarmos essa criança de todo o nosso coração? Certamente não lhe vamos educar e criar com o amor, o carinho e a paciência que naturalmente teríamos se a desejássemos como se fosse “a menina dos nossos olhos.”
O desejar de verdade, de coração com intensidade, com paixão com vontade é preciso.
O sincero desejar é justificação suficiente para trazer uma criança ao mundo. O desejo do nosso coração não precisa de razão porque a razão é o próprio desejo. Já o “querer” ter uma criança, envolve várias questões de porquê se quer, para quê se quer, de que forma se quer. Então se quisermos ter um filho, é bom analisarmos todas essas questões a fundo para saber qual é a nossa verdadeira motivação para assim o querer. O que é diferente do desejar, que vem do coração, que está diretamente ligado com uma fonte infinita de amor.
É necessário desejar uma criança para que ela venha até nós e concebamos de forma positiva e consciente. É necessário deseja-la para que naturalmente não nos falte o amor, a paixão e a dedicação necessárias para fazer o trabalho de vida de criar essa criança.
Muitas vezes a criança vem de repente, sem termos planeado a sua conceção. E cuidamos e amamos essa criança com toda a dedicação mesmo assim. Em alguns casos já existe nessas pessoas um desejo pela maternidade ou paternidade. A criança pode não ter sido planeada, mas lá no fundo do seu ser o progenitor deseja ser pai ou mãe. E recebe a criança com todo o amor, enfrentando todos os desafios com dedicação e paixão pelo que faz. Há também aqueles que aprendem a amar e desejar a criança quando ela já cá está. É um processo que leva o seu tempo, mas é bem-sucedido e só acontece naturalmente, nunca de forma forçosa.
Mas há muitos e muitos, para quem o processo é mecânico, e põem crianças no mundo por pôr, por cumprir com o calendário, por pressão dos parceiros, das famílias, por necessidade de provar-se a si mesmo ou a outros que é capaz de procriar. E daí discorrem todas as espécies e graus de pais e mães desinteressados, ausentes, que dão mais de si ao trabalho, ou a outra coisa que lhes dê prazer, que desejem fazer, porque a maternidade e paternidade não lhes dá.
Mas são pais e mães e estão aí entres nós no nosso convívio, são tão normais quanto qualquer um de nós. Não estou a falar de pais e mães que abandonam os seus filhos, mas sim daqueles com quem os filhos crescem e “cumprem com o seu dever de pai e mãe”, mas existe a desconexão com os filhos. Existe o não ouvir o filho, o não compreender o filho, não existe o laço afetivo profundo com o filho. E por mais que estejam a prover a roupa, o alimento e a escola, não existe o verdadeiro amor.
É sobre todos nós que somos filhos, é sobre todos nós que somos e seremos pais, é sobre como trazemos a humanidade ao mundo e como a forma de trazer condiciona o comportamento dessa humanidade.
Ser pai e mãe, não devia ser um dever, devia ser um prazer. E para ser um prazer, é preciso desejar.
Sara
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