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Parteiras Tradicionais Salvam Vidas

Conheci parteiras tradicionais em Luanda, Huambo e Bié.

Elas têm uma doçura na fala e no tato, ouvem… Partilham incríveis histórias com discrição e cuidado. São mulheres que nos fazem sentir acolhidas. São mulheres afáveis, carinhosas com um amor sincero pelo trabalho que fazem, mas uma profunda tristeza no olhar e um corpo, que apesar de forte, com marcas de uma existência sofrida.






Nas comunidades são quem está mais perto de uma parturiente. Que conhece a sua vida e a sua história, que conhece a sua família e o seu entorno. Que sabe como cada gestante vive, das dificuldades que tem.


Quando há uma parteira numa comunidade acompanhamento que ela poderá fazer à sua gestante é mais abrangente pelo fator proximidade. Não é uma profissional com que se cruza só no hospital, mas sim uma pessoa envolvida na vida da comunidade com que as gestantes se cruzam todos os dias, com quem conversam sobre a sua vida e não só sobre a sua gestação e parto, que as acompanha quase que diariamente e pode ter uma apreciação contínua do estado de saúde não só físico, mas também psicológico e emocional daquela mãe.


À parteira tradicional é-lhe possível observar o contexto e as questões com que lida cada mãe que atende.

Toda a vida comunitária da parteira acaba contribuindo para o seu trabalho, enriquecendo a sua capacidade de prover um atendimento mais personalizado que tenha em conta a situação pessoal de cada gestante e parturiente. Permitindo um atendimento mais rápido, mais personalizado, mais íntimo pela familiaridade e de maior confiança pelos laços entre parteira e gestante.


Estes fatores que muitas vezes nos esquecemos contribuem para o sucesso dos partos. Mães já sentiram o desconforto que é ser atendida na hora do parto por pessoas com quem nunca tiveram contacto e a diferença que faz quando essas pessoas tomam algum do seu tempo para apresentar-se com carinho, travar conhecimento e faze-la sentir-se mais acolhida, e quando não. O estado psicológico da mãe é afetado, o que afeta também o progresso do parto podendo levar à necessidade de intervenções.


No nosso país, especialmente na capital, as parteiras tradicionais ainda são olhadas e tratadas com preconceito. Nós os de classes sociais altas e dos centros urbanos, não confiamos nelas por serem pessoas de baixa renda, com pouca instrução, do campo, que não sabem falar o português corretamente (se falam o português), porque se vestem ainda com panos e porque não têm um diploma universitário para exibir e transmitir segurança.


Tem havido inclusive por parte do próprio Ministério da Saúde uma campanha de afastamento e desacreditação das parteiras tradicionais, quase que tratando-as como criminosas, definitivamente marginalizando-as pela falta de instrução que estas senhoras têm. Há noutras alas do governo ações formativas pelo Ministério da Família e Promoção da Mulher, pelas administrações municipais e ONG´s para formar, treinar e capacitar estas senhoras num esforço por aproveitar o seu poder de ação na comunidade e melhorar o seu atendimento com conhecimentos técnicos e material para o seu trabalho.


Quando isto acontece, todas elas recebem bem as formações e ficam felizes por aprender ainda mais. São mulheres ávidas por conhecimento.

É preciso prestarmos atenção ao preconceito com que tratamos estas senhoras pelo simples facto de elas não se apresentarem da mesma forma que um médico formado se apresente. Estamos habituados a considerar a bata e o diploma como sinais de competência e confiança, quando na prática sabemos que assim não o é. A bata e o diploma identificam e dão uma licença para praticar a ciência mas a competência depende do profissional, de se ele absorveu e aplica os conhecimentos que lhe foram passados pela instituição licenciadora.


Quando tratamos parteiras tradicionais com preconceito, culpando-as pela mortalidade materna e infantil, nos esquecemos das taxas de mortalidade materna e infantil que vêm das instituições sanitárias. Nos esquecemos das debilidades das nossas instituições sanitárias, nos esquecemos que lá onde as parteiras atendem a instituição sanitária mais próxima está a uma distância absurda e que a comunidade pode não ter um só carro privado para se deslocar até lá, nem transporte público que não há energia elétrica para melhor visibilidade durante o acompanhamento do parto ou água potável para consumo e higiene. Tudo condições básicas para a sobrevivência humana que os governos devem prover e que o nosso ainda não provê. É um conjunto de situações, ainda em maior número das citadas aqui, que causa a mortalidade materna e infantil e não só a atuação das parteiras tradicionais.


Há um problema realmente de que as parteiras tradicionais padecem, mas que é de fácil resolução. As parteiras tradicionais têm conhecimento tradicional para executar seu trabalho, conhecimento passado de mãe para filha, de geração em geração. Assim foi que bebés vieram ao mundo durante milénios antes da ginecologia e obstetrícia moderna existirem há coisa de mais ou menos duzentos anos.


Não têm o conhecimento científico, moderno que vem com uma formação fornecida por alguma instituição licenciadora acreditada segundo os standards mundiais. Este conhecimento científico e moderno, tal como o conhecimento tradicional tem a sua importância e deve ser estudado por estas parteiras. A união destes dois conhecimentos, aliado ao amor e influência comunitária que estas senhoras têm só se mostra ser uma capacitação poderosa que melhora tremendamente o atendimento das parteiras e tem a capacidade de salvar vidas melhorando o quadro de mortalidade materna e infantil do país.


Aliado a melhoria de condições de vida das comunidades com melhores condições de habitabilidade, água e eletricidade, é possível mudarmos sim os nossos índices de mortalidade materna e infantil e salvarmos vidas.

O pagamento de salários dignos por parte do governo a estas senhoras também devia ser observado. Estando elas onde as equipas e instituições sanitárias não conseguem estar, provendo serviços sanitários, elas são tão funcionárias do estado como qualquer médico ou enfermeiro que trabalhe para um hospital público.


Em mais um estudo recente divulgado pela OMS e pela Confederação Internacional de Parteiras no Lancet Global Health já apelou mais uma vez a que os governos dos países em vias de desenvolvimento tenham atenção e tomem ação imediata na capacitação das parteiras tradicionais. Uma medida que segundo o estudo pode salvar a vida a a 4.3 milhões de mães e crianças por ano até 2035, apontando que dois terços das mortes maternas e infantis podem ser prevenidas com medidas postas em prática por parteiras tradicionais.


Ao darmos educação e formação que esteja ao nível dos standards internacionais às nossas parteiras tradicionais conseguimos salvar mais vidas, pois elas não só estão onde os médicos e as instituições sanitárias não estão, mas também têm a confiança das comunidades a que servem, confiança essa que as populações dessas comunidades não depositam nas instituições sanitárias pelo tratamento que recebem nelas.


As camadas sociais mais altas discriminam e marginalizam as parteiras tradicionais, fazendo mais difícil ou mesmo proibindo o seu trabalho, mas as camadas mais baixas, as populações das comunidades, aquelas que não tomam as decisões de governação do país, são as que mais precisam do seu trabalho e mais sofrem com a falta dele.


A decisão é simples e fácil de tomar se não tivermos preconceito e se tivermos verdadeiramente a vontade de salvar vidas. As ações de formação já têm sido feitas em pequena escala, não é preciso inventar a roda. Só se precisa de um verdadeiro programa nacional de formação de parteiras em grande escala.


Sara


Photo Credit: Alyona Synenko/CICV

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