A standarização do estilo de vida caucasiano veio com a colonização e globalização e todos nós somos obrigados a consentir, concordar e obedecer a regras que nos dão a ilusão de nos tornarmos cada vez melhores e mais valorizados seguindo esse padrão. Só que não… É a cor da pele o que fala sempre mais alto.

Não é só o Brasil
Não são só os Estados Unidos
Somos nós por todos os lados. Todos nós negros deste planeta. Todos nós que fomos desculturalizados, que a todos nós nos foi destruída a identidade, a nós que nos foi arrancada a força potente das nossas religiões afrikanas, nós que hoje com o nosso subconsciente acreditamos que tudo que vem de uma civilização mais clara é melhor e sempre superior àquilo que nós podemos fazer e criar, àquilo que nós podemos qualquer dia ser.
Enquanto vejo os Estados Unidos enfurecidos de ponta a ponta com a brutalidade policial contra negros, e negros morrerem a cada 23 minutos no Brasil, crianças negras morrerem todas as semanas no Brasil, todos vítimas mortais do racismo institucional, penso em todos nós, todos sem excepção como vítimas do racismo institucional.
Um racismo que atira para Afrika o lixo industrial e tecnológico das civilizações avançadas, que envia-nos mediações que foram lá produzidas em excesso mas que não passaram no controle de qualidade para serem usadas pelos cidadãos de primeira. Que envia para cá rações alimentares transgénicas que ilusoriamente nos matam a fome enquanto nos enchem de cancros, infertilidade e doenças crónicas, que nos infesta e infiltra com intrigas, missionários e armamento alimentando conflitos entre etnias afrikanas para que nos matemos uns aos outros. Que nos faz silenciosas e secretas guerras biológicas, que envia falsos diplomatas com sorrisos e discursos falaciosos que fingem vir fazer acordos que estabeleçam a igualdade e cooperação, mas na verdade só defendem os interesses dos cidadãos civilizados de pele clara. Que continua a sugar da jugular dos recursos naturais de Afrika sem que nós sejamos capazes de tomar uma verdadeira posição de autoridade, soberania e defesa sobre os nossos povos, a nossa humanidade e as nossas terras…

E me canso de ver-nos como vítimas!
Já chega de sermos vítimas. Vítimas sofrem de um complexo de inferioridade que passam uns para os outros de geração em geração. Imortalizamos esse complexo com frases que dizemos na brincadeira como “o branco sabe”, mas que definem o nosso subconsciente, como nos vemos e como nos posicionamos em relação à força massiva ocidental. Como pedintes vamos buscar assimilar-nos ao caucasiano, buscar a aprovação do caucasiano para dialogarmos ao nível dele, na esperança que ele nos entenda e aceite tratar-nos melhor, de uma forma um bocadinho mais igual àquela que ele se trata a si próprio. Ou quando nos revoltamos destruímos o que há à nossa volta, na esperança de pela força tomar algum lugar de prioridade. Algum lugar à mesa.
Não vai acontecer.
Nunca aconteceu, nenhum desses dois métodos funciona.
O que nós não fazemos em massa, é nos autonomizar. Nós fomos à procura de independências mas nunca soubemos ser autónomos.
Esperamos que o caucasiano nos dê oportunidades e nos dite as regras para nos padrões dele estudarmos e adoptarmos os seus maneirismos, formas de dialogar, analisar e viver, para que dentro das regras causasianas procuremos encontrar algum pé de igualdade entre pretos e brancos. Não vai acontecer. Não vai acontecer porque o caucasiano se sente superior, no seu subconsciente ele sabe que é superior como nós no nosso subconsciente sabemos que somos inferiores.
O causasiano nos educou a acreditar que somos inferiores e que só quando aprendemos as suas formas de estar é que podemos ser iguais, mas isso é uma falácia. Um grande piada de que os caucasianos se riem, porque depois de fazermos todo o esforço para lá chegar, através do seu sistema de educação, através das suas universidades, através dos seus formatos de mercado de trabalho, através da sua moeda que é a oficializada para a troca comercial internacional, ainda assim não somos respeitados.
Ainda assim não somos iguais, ainda assim somos inferiores quando realmente importa!
Quando realmente importa é a cor da pele, que é o primeiro que salta à vista que faz a diferença. Não importa quem te tenhas feito ser no mundo branco, no mundo lixiviado.
Não nos autonomizamos, não criamos aquilo que era nosso, porque só conhecíamos uma única realidade próspera possível. A realidade do branco. Nunca a vida do negro nos pareceu próspera, a vida do negro sempre foi vida inferior, vida de miséria. Porque por gerações se apagou a história gloriosa do negro, ao ponto de não termos lembrança de que alguma vez tivemos prosperidade. Tudo o que sabemos é miséria.
Então tínhamos que fazer segundo o evangelho branco para viver melhor, e essa ilusão de que viver melhor é viver confortavelmente segundo o capitalismo caucasiano, fez-nos pensar que sucedíamos quando não. Ter o dinheiro do branco, a educação do branco e os títulos do branco não nos faz igual ao branco, não nos dá os direitos não escritos inalienáveis e natos do branco. Porque vivemos ainda de medo, de doenças cardíacas, de subjugação velada e escancarada, racismo velado, escancarado e institucional tudo em esteroides, a um nível que os brancos nunca tiveram que lidar, nem têm que lidar, a não ser que sejam inferiorizados como nós fomos por gerações e gerações para que o sintam, entendam e se iguale o mal que nos foi e é feito a nível celular. Não… Não há igualdade possível caminhando pelo percurso que o branco indicou. É mais uma armadilha e nós caímos nela.
Numa entrevista concedida à BBC a historiadora Luciana da Cruz Brito professora da UFRB e especialista em história da escravidão, abolição e pós abolição no Brasil e EUA dizia: “ Nós não tivemos uma formação, desde a infância, na qual somos treinadas e treinados a perceber o racismo no momento em que ele está acontecendo, sem ser nomeado. Isso faz com que vejamos coisas como o avô de Ágatha (Félix, de 8 anos, morta por tiros de fuzil de um policial em 2019) dizendo a jornalistas do IML: “ela fazia inglês, ela fazia balé, ela era boa aluna””
Nós acreditamos que nos igualando ao branco, fazendo aquilo que o branco faz, vivendo nos standards do branco ganhamos valor! E quando isso não acontece, quando a cor da nossa pele nos vale a vida, dá crash no nosso sistema! “Porque é que não funcionou?? Eu fiz TUDO o que me foi dito para fazer, eu fiz TUDO o que era esperado para ser valorizado!”
Tu és preto!
Nós nos devemos a nós, à nossa descendência e aos nossos ancestrais o libertar-nos da escravidão mental. Devemo-nos a nós mesmos não esperar por oportunidades, mas sim criarmos nós as oportunidades e deixarmos de ser vítimas. Devemo-nos a nós mesmos passarmos a ser os criadores e protagonistas das nossas vidas, das nossas realidades, dos nossos contextos, das nossas economias, e nós afrikanos dos nossos países. Porque é que temos que funcionar segundo outras leis, se temos os recursos para fazer as nossas próprias? O que nos falta nesta terra abundante que tudo tem, desde o material ao intelectual, que precisamos ir buscar o que quer que seja de fora?
O que defendo não tem a ver com isolarmo-nos do mundo, mas sim com criarmos as nossas próprias instituições económicas, governamentais, educacionais, que falam a nossa linguagem, nos elevam e valorizam a nós segundo a nossa identidade. Que criam oportunidades para nós segundo a nossa realidade e identidade. E não nos podemos deter no facto de termos perdido a nossa identidade, mas sim irmos resgatá-la ou mesmo criar uma nova integrando aquilo que já sabemos sobre nós com aquilo que somos na atualidade.
É um trabalho árduo e que dura séculos! Um trabalho que desde o primeiro passo que se dá em direção a ele e que se imagina o final dele parece distante e impossível.
Mas sabem também o que foi feito exactamente deste mesmo jeito? Todo o processo de desculturalização, destruição de identidade, escravidão física e mental que sofremos. Foi feito durante séculos de forma brilhante e foi um plano perfeito! Porque aqui estamos nós ao fim de 151 anos depois da abolição completa da escravatura no Império Português, o maior traficante de escravos da história, ainda vivendo em condições degradantes para a nossa mente e nosso espírito os resultados desse plano feito a pelo menos 600 anos atrás com o objectivo de quebrar completamente as nossas bases espirituais e culturais para que a escravidão fosse mais do que um sucesso económico, que fosse um sucesso de condicionamento mental, para sempre!
A mudança não acontece de um momento para o outro, a mudança é lenta e paulatina, mas deve acontecer, e devemos nos motivar todos os dias para que aconteça! Mesmo que morramos sem a ver, devemos visualizar nos nossos sonhos os nossos descendentes vivê-la e vivê-la bem, em prosperidade e harmonia.
Eu acredito que este é o momento de buscarmos com paixão a nossa identidade para construir a nossa realidade, e termos isto como objectivo colectivo. Uma realidade autónoma, soberana, que fala as nossas línguas, que diz respeito a africanos e negros em todo o mundo, que faz negros e africanos chegarem ao topo das suas civilizações e dá possibilidades a negros e africanos de crescerem e se emanciparem.
Para que o nosso objectivo obrigatório não seja assimilar-nos à cultura branca imposta como global para chegar a Harvard segundo os standards caucasianos em que nenhum de nós contribuiu para estabelecer, mas sim chegar à Universidade da Cidade do Cabo - ainda demasiado caucasiana, infelizmente - segundo os standards africanos conhecedores da nossa identidade, espiritualidade, cultura e realidade.
Não nos vão dar nada do que seja deles, por isso temos que criar aquilo que é nosso! Inclusive respeito, dignidade e um lugar digno no mundo que é algo que eles entendem como deles. Temos que cada vez mais valorizar-nos a nós mesmos, valorizar-nos uns aos outros e ensinar as nossas crianças a valorizarem-se e a valorizarem os seus.
Nós conseguimos fazer isso, respeitando a nossa cultura e respeitando a cultura alheia. Ao erguer-nos como nação negra devemos orgulhar-nos do facto de sabermos respeitar-nos a nós e ao outro e criar harmonia nos intercâmbios sem nos degradarmos a nós ou a eles. Nós não precisamos nos isolar, mas precisamos nos encontrar, e depois devemos nos unir e fazer-nos prioridade, devemos nós negros criar para negros!
Sara