O “toque” feito nas circunstâncias que foi feito a esta paciente e a milhares de outras é percebido pela psique da mulher exatamente da mesma forma que é o abuso sexual! Alguém que não conhecemos, com quem não temos relação íntima, a quem não demos consentimento invade a nossa privacidade e intimidade sexual por estar numa posição de poder, que neste caso lhe é conferida pela sua profissão.

O agressor, justifica dizendo que “tem que”, “precisa de” – expressões imperativas - saber em que estado de evolução está o trabalho de parto daquela mulher, atropelando completamente toda uma série de procedimentos e abordagens que devem ser tidos para que se estabeleça uma relação de confiança entre médico e parturiente, e desprezando completamente o direito que a parturiente tem de dar o seu consentimento ou de dizer não a este exame. Sim, é direito da parturiente negá-lo, ou de pedir que seja outra pessoa a fazê-lo, e é dever do médico obter consentimento dela para o procedimento antes de o fazer, e também de pedir a outra pessoa que o faça caso a parturiente recuse a sua assistência.
É preciso que os egos dos médicos saibam ter a humildade de lidar com isso, com um paciente informado e que demanda os seus direitos.
Esta é a mesma cena que vivemos em restaurantes quando há alguma coisa de errado com o serviço ou com a comida e fazemos uma reclamação. Num restaurante com profissionais bem preparados e abertos a críticas, porque têm consciência que as críticas até ajudam a melhorar o seu serviço, por isso são importantes de se ouvir, ouve-se com atenção o cliente, não se procura subterfúgios e desculpas, tem-se a capacidade de internamente analisar se aquela queixa é justa ou não, e oferece-se uma alternativa ao cliente.
Porque afinal o objetivo é prover um bom serviço e quanto mais clientes satisfeitos, melhor para o negócio.
Num restaurante com profissionais mal preparados, a mesma questão é recebida como uma afronta, os profissionais imediatamente tomam uma posição defensiva porque se sentem ofendidos, e vão procurar dar todas as desculpas para o ocorrido, e não se oferece uma alternativa.
Saber desta reação negativa de antemão faz com que muitos de nós não reclamemos. É o mais comum em Angola não reclamarmos dos serviços e assistência que nos são prestados exatamente por isso. Se na restauração não reclamamos por medo da reação negativa ou porque sabemos que não vamos obter melhoria nem alternativa nenhuma no serviço, vamos reclamar quando a nossa vida e saúde está nas mãos de um profissional que possa ter uma reação negativa?
No sistema de saúde é ainda mais complicado para o paciente - neste caso o cliente que recebe uma prestação de serviço - sentir-se no poder de reclamar melhor atendimento, porque não há opções. Num restaurante podemos sair e escolher não voltar mais para lá, ir a outro onde o atendimento seja melhor. No sistema de saúde, não temos opção, temos mesmo que ficar ali. Seja porque de forma generalizada o sistema é precário, seja por falta de capacidade financeira para podermos escolher melhor (sair do país) ou ligeiramente melhor (clínica privada).
Por isso que nos calamos e externamente “consentimos” a violação.
A dor física que se sente num momento em que o colo do útero está extremamente sensível, a dor psicológica de ter de se deixar invadir numa parte tão íntima do corpo por obrigação, a humilhação de ser tocada numa região íntima por quem não se conhece, a completa perda de dignidade quando este toque é feito com brutalidade, impaciência, falta de delicadeza e carinho e a revolta que se sente por se saber que o profissional que nos está a fazer isso até o pode fazer de forma mais respeitosa e cuidadosa, mas não o faz por escolha própria, que não o faz porque está numa posição de poder, então faz como lhe apetecer, fazem este exame fazer a mulher sentir-se exatamente da mesma forma como alguém que é violado.
Simplesmente pelas características de como é feito quando não há cuidado nem consentimento na sua execução ele entra na definição de uma violação!
Pela forma como nos faz sentir, é uma violação.
Como é que conseguem ter paz com vocês mesmos, senhores doutores e doutoras – volto a dizer, é ainda mais revoltante quando é uma mulher a fazê-lo-, quando é vossa rotina violar mulheres em trabalho de parto, um momento que deveria ser o mais protegido, respeitado e dignificado? Como é que vocês dormem à noite?
Realmente pensam nisso? Na paciente que está perante vocês? Realmente a ouvem e procuram tornar a experiência dela a melhor possível? Ou simplesmente nem se lembram que existe essa possibilidade e se justificam no quão frustrante é fazer medicina no nosso contexto?
A assistência, a forma como tratamos os doentes - os clientes, as pessoas, os humanos -, depende mais de como escolhemos tratá-los do que dos recursos que temos ou deixamos de ter.
Há formas de se avaliar, fazer uma estimativa da dilatação sem um exame interno: o comportamento da mãe vai ficando mais introspetivo ao passo que o trabalho de parto vai avançando: ela fala gradualmente menos; faz muito mais sons como “hums’, ah’s, ui’s” do que diz palavras, concentra-se e interioriza-se para as contrações; há um cheiro característico que chega já no fim da dilatação, antes da fase expulsiva; a mãe torna-se mais exigente ou agressiva, ou entra numa espécie de transe, ou desacredita que vai conseguir, pede que lhe tirem o bebé, exige uma epidural, quando já está entre sete a dez centímetros de dilatação; pode-se sentir a descida da cabeça do bebé por fora, na pélvis e no monte de vénus; há uma linha escura que vai aumentando de tamanho a partir do anus para cima, subindo pela lombar, que vai de um a dez centímetros, acompanhando a dilatação do colo do útero e é exata e correta para se determinar a dilatação em 76% das mulheres; há o losango de Michaelis, que dá sinal de que a pélvis se está a abrir para a chegada do bebé e aparece na zona do sacro… Há formas de estimar a dilatação sem invadir.
Mas é mesmo necessário ter contacto com a mãe, observar a mãe, ouvir a mãe, ter uma relação com a mãe, dar informação e poder de escolha à mãe. Por isto, por isto, pelo respeito e pelo amor se caracteriza a assistência humanizada.
Isto se consegue fazendo um acompanhamento contínuo da parturiente e não só intermitente enquanto o médico se ocupa de outras pacientes ou descansa o seu sono no turno da noite, é um tipo de acompanhamento que exige exclusividade àquela parturiente, ou que pelo menos hajam poucas parturientes para atender. O que entendo que é um cenário difícil para um bom número de médicos, impossível para outro bom número deles.
Por isso é extremamente importante o papel das doulas ou enfermeiras que estejam a acompanhar de um para um as parturientes continuamente, dando assistência a esse médico. Deve haver uma enfermeira para cada parturiente numa ala de maternidade, e isto já passa por regras e medidas de cada clínica e no sector estatal de medidas impostas pelo governo. Também há um trabalho necessário e de grande dimensão que deve ser feito a este nível.
Caso o exame interno seja mesmo necessário, fazê-lo da forma mais digna, mais suave e menos dolorosa é possível. Apresentando-se, sendo amável e ganhando a confiança dessa mulher, pondo-lhe numa posição em que ela se sinta mais confortável para esse exame: sair da caixa e tentar por exemplo que ela esteja de quatro, de lado, ou se calhar até de pé. Sendo de facto cuidadoso, carinhoso e atencioso, tendo um toque suave e cauteloso ajudando a parturiente a relaxar o máximo possível para o exame com técnicas de respiração, com palavras de atenção, carinho e encorajamento.
É possível sim! Vontade e humanidade é só o que falta, e isso não é o governo que providencia. Somos nós, é decisão pessoal de cada um atender com carinho, dignidade, respeito, inspirando confiança, estabelecendo elos com os pacientes e tendo uma abordagem humanizada na assistência. E isto só melhora a performance profissional.
Às mulheres e seus acompanhantes, peço que não permitam este tipo de comportamento, ele é abuso, constitui violência obstétrica e deve ser denunciado. Peçam outro profissional, reivindiquem os vossos direitos, abandonem essa unidade hospitalar se necessário e possível, porque não estão a ser tratados como seres humanos se quer. Devemos reivindicar os nossos direitos também fora dos hospitais, no parlamento, de frente para governo.
Exigir melhores condições de trabalho para os médicos, porque muito das reações de maltrato vêm como consequência do cansaço e frustração diária com que eles vivem e trabalham, criando um ciclo de más condições de trabalho, logo más condições de atendimento.
Exigir melhores instalações sanitárias, exigir leis que regulem a assistência médica e se baseiem em princípios de assistência humanizada.
Merecemos todos como seres humanos dignidade, em todas as horas, principalmente na hora de parir e nascer.
Sara
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