Percorrendo os quilómetros de palavras inanes de líderes bufões, pelo retrovisor já não se vê a cidade que continua o trabalho de se igualar aos padrões caucasianos. Começo a ouvir os leves sussurros dos ancestrais silenciados em nome da Cruz de Cristo que precisava ser forjada em ouro e impregnada de diamantes negros para brilhar em toda a extensão do globo.

Sussurros ainda amordaçados pela visão toldada de descendentes, cujas colunas vertebrais já não sentem a vibração da terra bloqueada nos tornozelos por algemas mentais, que fazem com que as rotas comerciais desenhadas pelo norte ainda nos guiem os passos da vida.
Mas o sussurro escondido no vento traz o cheiro da terra das matas serradas do caminho para o Uíge, molhadas pela chuva que toca os tambores encerrando segredos. Sinto vontade de ouvir histórias de um tempo, num reino, que só um Mucongo sabe contar…
Pés dançantes fazem subir poeira, oiço o barulho de folhas secas, Bakamas em Cabinda e Tchihongo nas Lundas me confundem com clamores por independências diferentes daquela que na escola em história me vieram contar.
Apertam-me com dor, amargura, desespero e revolta, choros de homens, mulheres e crianças, lamentos, gritos estridentes vindos de Malanje, Huambo, Bié… profundamente bombardeado, o coração da minha mãe ainda bate mesmo sangrando.
Da fenda da Tundavala vêm vibrações do bater de asas de fénix que fazem sentir como a natureza transforma o mal.
Na língua do mundele me ensinaram que não sei parir, mas as vozes sábias que se levantam em tchiherero no ocuiambela falam de mulheres soberanas da sua natureza. Vêm as avós e bisavós ensinar-me como é.
Do Cunene bocas secas sopram cantos secos de como é viver caminhando pelo fio da vida admirando em meio do breu um único ecrã iluminado mostrando casamentos Luandenses. No meio do sul e da noite acordam-me estalidos de língua de homens San como galhos secos quebrando à passagem sorrateira de pés descalços e olhos perspicazes e atentos.
De todas as partes cantos de mulheres violadas, maltratadas, assassinadas por homens em quem confiaram, como a Kianda, que em Luanda sangra cantando enquanto nela boiam estilhaços do nosso desprezo e maltrato que as chuvas e rios espalham nela. Navios imunes deslizam por ela levando pra bem longe as riquezas da terra… Mas as bessanganas continuam agarradas às suas missangas.
No Namibe o silêncio vai avançando com as areias do deserto, enquanto os titãs do Moxico e Kwando Kubango dormem descalços apoiados um nas costas do outro...
Fecho os olhos e sinto o cheiro, a brisa, oiço os sons, olho o astro rei, deixo que a vibração da terra dê sonoridade à doçura amarga que é ser filha de uma terra que pela generosidade de nos oferecer o doce da vida contido no seu ventre é violada e abusada pelos meus próprios irmãos.
Me junto aos lamentos, murmúrios, cantos, choros e gritos. No desespero danço alegrias da paixão descontrolada que tenho pela mãe. Sou Ambundo da Ilha de Luanda, bantu que desceu dos Yorubas à tempos distantes. Me banho no delta do Okavango pedindo a bênção, riqueza, saúde, amor e proteção de Ndanda Lunda, com mel Ngangela faço as minhas oferendas à Deusa.
Grito, só quero ser livre para ser eu e ver também minha terra mãe, em todas as suas cores, vibrações, sabores e texturas, ser a expressão máxima das suas capacidades.
Ser filha de Angola não é permissão para ser abusada, desrespeitada, maltratada, globalizada à força, sugada até ao tutano e abandonada sem forças, pois em mim há exuberância e diversidade, sou vibrante e capaz, sorridente e firme, acolhedora e persistente, inovadora, evoluo e faço evoluir e ainda assim tão enraizada em mim mesma, que esse agridoce é meu com certeza.
Por isso eu vou peneirar a fuba de bombó que estanca o sangramento das parturientes, porque do parto de 75 Angola não pode morrer.
Angola nasce filhos e nasce terra de kitandeiras que apregoam o carapau de onde sai o azeite que nos dá a inteligência de esquivar os falaciosos futuros que nos traz o noticiário com a astúcia e agilidade de quem cresceu jogando 35, e a leveza de quem sabe encontrar na estiga a sanidade.
Angola nasce terra e nasce filhos que sabem que a sua alegria carrega a força que ajuda a persistir a cada noite que o mosquito zumbe e a cada dia que a água falta para lavar o dorso de quem põe bloco em cima de bloco para fazer a cozinha do quintal que junta a família no domingo ao som das vibrações de Waldemar e Burity.
Se ao pôr do sol que se afunda no silêncio da Baía dos Tigres me perguntas o que é ser angolano, te digo: espera para ver, vais gostar!
Sara