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É Bandida Essa

Esta semana recebi um vídeo de uma celebridade angolana que me fez rir tanto que o partilhei com mais pessoas, numa das partilhas alguém respondeu: “Bem bandida essa”. Perguntei o que era “bandida”? Responderam-me que ia para a cama com homens por dinheiro.





Suspirei. É difícil ser mulher! É impressionante o estado de condicionamento mental em que estamos de constante julgamento sem olharmos com profundidade para as questões que nos rodeiam. Obviamente é muito mais fácil julgar uma mulher que se deita com um ou vários homens por subsistência, ou mesmo por ambição.


Mas a verdade é que eu mesma já fiquei frustrada comigo por não ter essa capacidade. Acreditem, só o imaginar um toque leve na minha pele das mãos de um homem com intenções sexuais para comigo, mas que eu não deseje causa-me sensações psicológicas e físicas fortes o suficiente para me causar ânsia de vómito. Imaginem o que é engolir isso em nome de chegar ao meu objetivo e deixa-lo invadir-me. Mas com certeza se o tivesse feito em algum momento da minha vida, não estava a passar por tanta dificuldade para alcançar os meus objetivos, disso eu tenho a certeza.


Dos meus 13 aos 18 participei em espetáculos de dança infantil em que a minha turma era a mais velha e mais avançada. Os meus pais iam a todos os espetáculos em que eu dançava e um dia foram alertados para conversas que havia entre homens mais velhos e com poder que iam a esses espetáculos:


“Cuidado, que há gente na plateia que olha para essas meninas e as requisita.” Enquanto és adolescente e só queres dançar, ser artística, evoluir os teus talentos e te divertir, há homens que olham para ti e já te desejam sexualmente.

De idade bem tenra já nos vêm aliciar com o que seja para lhes satisfazeres os desejos sexuais. Até mesmo a crianças mais pequenas, alicia-se com um rebuçado, um brinquedo “vem para o colo do tio e faz isto, isto e aquilo”.


Há já um comportamento de “chamada e resposta” que vai sendo condicionado na mente das meninas desde bem cedo: se me deres isto eu dou-te isto.


Mesmo nas escolas quantas não têm de fazer favores sexuais para poder passar de classe, porque a sua inteligência é invalidada? Os resultados das provas e exames não valem nada se não se der o que o professor exige.


Na hora de ir procurar um emprego o currículo perfeito não serve se não se passar no teste do sofá.


O tio, o professor e o empregador são todos homens de poder e usam o seu poder para criar e perpetuar um sistema em que nos é ensinado desde cedo que sexo é uma moeda poderosíssima de troca e é realmente a moeda que nós sempre temos para dar.


Acham mesmo que uma mulher se sente satisfeita de ter que partilhar a sua intimidade com quem ela não deseja para atingir os seus objetivos de vida? O que se acha é que mulher nem ter que ter objetivos de vida.


Acham que é com satisfação que vivemos num sistema em que somos invalidadas nas nossas capacidades intelectuais e artísticas mesmo quando somos brilhantes, para que de maneira nenhuma tenhamos acesso justo aos lugares de poder de que disfrutam os homens? O que acontece é que isto é um sistema para que os homens possam ter mais uma forma de dominar as mulheres sexualmente sem precisar de passar pelo processo de aprovação delas.


Qual é o objetivo de um homem que troca bens materiais e cargos profissionais por sexo? Pura e simplesmente ter a facilidade de ter os seus desejos sexuais satisfeitos, sem nem se dar ao trabalho de cortejar aquela mulher. É medo de rejeição? É insegurança?


Ele sabe no seu íntimo que não é capaz de tocar o íntimo dessa mulher de forma decente, antes mesmo de qualquer toque físico para que ela lhe dê o consentimento. Usa aquilo que ele tem, e que ela precisa, para a coagir a dar-lhe o que ele quer.


É insegurança e medo de perder o poder, para uma mulher. Porque lá no fundo esse homem também sabe que as suas capacidades podem ser ultrapassadas pelas dessa mulher. E nisto, se impede a caminhada profissional e social de uma mulher. União do útil ao agradável na cadeia alimentar do poderio masculino.


Vamos dizer que a vida é de sacrifícios e que temos que trabalhar duro para chegarmos aos nossos objetivos. Tenho duas respostas para isso: ir deitar-se com um homem que não se deseja é um sacrifício e é trabalho duro sim. De fácil isso não tem nada. Gostava de um dia recolher relatos anónimos das mulheres que o tiveram de fazer para saberem o quão sujos são os homens que o fazem e o quão elas gostariam de arrancar a sua própria pele e alma depois do contacto com eles.


A segunda resposta é que o sistema social está viciado a favor dos homens para que só eles, capazes ou não, sejam sempre os que têm acesso e direito à ascensão social. Mulheres não podem ter sonhos grandes porque para os realizar têm que usar o seu íntimo como moeda de troca, e se não o quiserem fazer devem contentar-se com uma vida simples e modesta, sem realizações: não há vergonha nenhuma nisso, manténs a tua dignidade e respeito.

E não temos direito a realizar os nossos sonhos? E não temos direito a crescer nas nossas carreiras profissionais? E não temos direito a querer chegar à presidência do nosso país se temos capacidade para isso?


O nosso presidente diz que só se nos comportarmos bem! “Comportar bem” na linguagem masculina tem muito de abrirmos as pernas, sermos submissas, atendermos às vontades masculinas que detêm o poder, “sê uma boa menina…” .


Quanto aos homens, comportando-se bem ou mal, tendo capacidades ou não, há sempre um lugar para eles, porque no sistema deles está estipulado que poder, ascensão e ambição é só deles. Um homem com ambição é muito bem visto, será um profissional de sucesso, é requisito masculino. Uma mulher com ambição é uma bandida. Mesmo que não se esteja a deitar com ninguém se ela exibir o punho, firmeza, determinação, capacidade de ação e altos níveis de exigência, características de uma pessoa com ambição ela é imediatamente chamada de bandida, puta, autoritátia é um alvo a abater, há que lhe bloquear o caminho. Uma mulher com ambição nunca é deixada passar impune sem se rasgar a sua dignidade, seja invadindo a sua intimidade seja cobrindo-a de insultos.


É muito triste esse vosso mundinho cheio de medo de mulheres, que faz tudo o que pode para nos manter debaixo da vossa sola.


Se o lugar da mulher não é na cozinha, pode até ser como secretária, enfermeira, mas cuidado com aquela que olha lá para cima e deseja lá estar. Há que lhe dificultar o caminho de todas as formas, e enquanto lhe dificultamos, aproveitamo-nos do corpo dela. Porque é só assim que somos vistas, como corpos.


O intelecto é sempre invalidado para que se mantenham só homens em posições de poder. E é visível a ira e violência por que um homem é tomado quando uma mulher o vence com razão, inteligência e coerência. É visível a afronta que sente o macho quando não espera que um ser que ele considera inferior e subjugado por ele lhe responde à altura. Os números dos assassinatos de mulheres inteligentes e capazes pelos seus parceiros inseguros estão aí para as estatísticas. Simplesmente não está na programação mental do homem que possa ser possível uma mulher estar ao mesmo nível que ele.


O condicionamento mental do macho humano é: o homem e só o homem tem poder e faz com isso o que ele quiser, dominando todas as outras espécies à sua volta, incluindo a mulher.
As regras deste jogo social foram feitas pelo patriarcado e são perpetuadas por homens, para vivermos em sociedade há que o jogar.

A escolha é: fazer o que os homens querem, humilhar-se, perder a dignidade, engolir invasão sexual e concorrer, talvez, de forma igual aos homens aos cargos que no papel estão disponíveis para todos, mas que na prática estão destinados a homens. Ou negar-se a fazer o que os homens querem e batalhar um milhão de vezes mais, com mais dificuldades, com humilhações, e na maior parte das vezes não chegar a lugar nenhum, e ainda ser mãe e mulher de quem muitas vezes nem nos apoia nos nossos sonhos.


Estou cansada de ouvir que a maioria das mulheres da minha sociedade tiveram de dormir com alguém para serem o que são para chegarem onde chegaram.

Nem às primeiras damas que conheci no meu país se poupou disso.

Se tiveram de o fazer, foi porque o sistema está construído assim. Se não o tivessem de o fazer não o fariam. Ninguém vai para a cama com quem não quer se não vê que essa é a sua única solução.


Lembrem-se disso da próxima vez que chamarem uma mulher de bandida e examinem o quão superficial é dizer “essa gosta mesmo”. As regras do jogo são feitas por quem a seguir chama-nos de bandidas. E nós ao chamarmos outras mulheres de bandidas por isso, caímos na armadilha do patriarcado e do julgamento superficial que também perpetua essa realidade. Não melhoramos nada.


A minha pergunta é: do jeito que vemos homens a serem continuamente incompetentes nos seus altos cargos, se a corrida fosse aberta e justa para as mulheres, será que Angola seria como a vemos hoje?


O que precisamos é de homens corajosos. Com a coragem de enfrentar os seus medos e inseguranças e se fortalecer no processo de cura. Esses homens saberão e estarão seguros nas suas capacidades e não duvidarão do seu potencial. Estarão tão seguros de si mesmos que não precisarão lastimar nem bloquear o caminho a mulher nenhuma. Esses homens saberão que o mundo não é um lugar de carência, mas de abundância, que existe lugar para todo mundo, e que o seu lugar está seguro naquilo que só eles mesmos sabem e vieram ao mundo para fazer.


Sara


Photo Credit: Calvin Lupiya on Unsplash

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